03.06.2021

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

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A solenidade de Corpus Christi retoma a Quinta-feira Santa, com uma novidade, porém. Nela, a Igreja não só celebra o mistério da Última Ceia, mas também agradece e louva a Cristo por estar presente a cada dia conosco, através do sacramento de seu Corpo e Sangue. Cristo caminha conosco, assim, ao longo de toda nossa história. É nosso pão e nosso companheiro, na caminhada. O Pão dos Anjos, isto é, o Pão da Verdade e Pão da Vida, se faz, assim, pão dos homens, Pão dos peregrinos, como lembra a Sequência desta Missa, escrita por Santo Tomás de Aquino (Lauda Sion).

 Diferentemente dos Domingos, na solenidade de hoje, em vez de comentar as leituras, uma por uma, nossas reflexões vão girar em torno de três temas, os mais significativos, ao nosso ver.

  1. Eu sou o Pão vivo descido do céu

O pão é alimento elementar, essencial, no cotidiano de quase todos os povos. Indica o necessário, o imprescindível, para a vida do homem.

 O trigo, transformado em pão, é certamente um dos simbolismos mais expressivos do mistério salvador que Deus realiza em nós através de Jesus Cristo, que é, ao mesmo tempo, Rei, Sacerdote e Sacrifício. Isso é inédito! Nunca em outras Religiões, o rei e o sacerdote se fazem a vítima ou o sacrifício pelo seu povo. É sempre o contrário: o povo é sacrificado pelo e para seu rei, pelo ou para seu deus. Por isso, com razão, Jesus, que se encarna e se deixa triturar em sua vontade própria, até a morte e morte de Cruz, para fazer a vontade do Pai e que, após sua Ressurreição, assume a forma de pão comível e de vinho bebível, é chamado com razão de Pão vivo e verdadeiro descido do Céu (Jo 6,41), Pão nosso de cada dia (Mt 6,12).

À simbologia do trigo, da farinha e do pão, se acrescenta a do fermento que, nesse caso, a simbologia é ambígua. Se, por um lado significa transformação espiritual, por outro lado, por provir da putrefação, pode significar também corrupção. Por isso, dizia Jesus aos discípulos: “Cuidai-vos do fermento dos fariseus!” (Lc 12,1). Paulo, aproveitando desse significado do fermento, lembra aos discípulos de Cristo – os cristãos – que devem ser massa sem fermento (1Cor 5,7); que precisam se tornar o que são (Rm 6,11-12; Cl 3, 3-5): pães sem fermento, isto é, pessoas que nutrem a vida dos outros e que são, ao mesmo tempo, íntegros, inteiros, simples, sem nenhuma corrupção no seguimento de Cristo, na vida nova que Ele inaugurou com sua morte sacrifical.

Semelhante ao pão, também a simbologia do vinho elaborado pelo esmagamento da uva originada da videira, nos transporta para realidades que são a raiz, o fundo de nossa existência. A primeira, e mais significativa de todas, é o amor. Assim, como o vinho é, por assim dizer, o sangue da uva, o Amor que é Deus, que é Jesus Cristo, tudo suporta, carrega e sustenta; um Amor-Doação, amor de profunda e mútua entrega, semelhante ao amor dos esposos, capaz de levar o fiel a sair de si, desprendendo-o de tudo para elevá-lo até o mais alto êxtase, como se pode ver em alguns místicos. São Francisco, por exemplo, movido pela dulcíssima melodia desse amor, costumava tomar nas mãos dois gravetos e, como se fossem violinos (Cf. 2C 127), fazia ressoar a música da criação, tão bem decantada, depois, no Cântico do Irmão Sol.

Para os antigos, pão e vinho eram símbolos, também e respectivamente, da vida ativa e da vida contemplativa, dos pequenos e dos grandes mistérios. Assim, o milagre da multiplicação dos pães impressiona pela quantidade, isto é, a superabundância dos pães; já o milagre da transformação da água em vinho, em Caná da Galileia, impressiona pela qualidade, isto é, pelo sabor excelente do vinho “melhor”. Cristo, no Novo Testamento, apresenta-se tanto como Pão da Vida, Pão do Céu (cfr. Jo 6), dimensão ativa, quanto como verdadeira Videira (Jo 15,1-5), dimensão contemplativa.

  1. Tomai e comei, isto é meu corpo, tomai e bebei, isto é meu sangue

Nunca é demais insistir que Jesus instituiu a Eucaristia para ser “comida” e “bebida”: Tomai e comei… Tomai e bebei... Isso é muito forte, quase não dá para acreditar! Deus se fazendo pão e vinho (“coisa”, “matéria”) e pedindo para que nós o comamos e o bebamos! Ele não diz: “Olhai, para mim, eu sou um espírito, me contemplai, me adorai!”. Romano Guardini atentava para o fato de que, antes de uma devoção religiosa, a Eucaristia é ação sacra em que o evento da Cruz, que foi antecipado e prenunciado na Última Ceia, atua em seu vigor e em sua vigência. Eucaristia não é representação, encenação, simbolização, mas a própria realidade, a Pessoa mesma de Cristo se doando, sempre e de novo, na Cruz. Foi essa a razão que, depois de muitos séculos de mera assistência à Missa, levou o Papa São Pio X, em 1903, a lançar a famosa exortação à participação ativa nos sacrossantos mistérios, condição indispensável para uma frutuosa renovação da vida cristã. Foi a semente desse espírito que, cinquenta anos depois, inspirou o Papa João XXIII a propor, em 1959, um Concílio para voltar às origens (Vaticano II).

Por isso, São Francisco costumava contemplar a Vinda de Cristo na Eucaristia como uma atualização de sua Vinda na Encarnação, recordando-nos que todos os dias (Ele) se humilha descendo do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote, a fim de ser Deus-conosco até o fim dos séculos (Ad I). Nesse sentido, também, se expressava São João Crisóstomo: Ó tremendo mistério! Ó inefável desígnio do divino conselho! Ó inefável bondade! O Criador se oferta como alimento à criatura, a própria vida se oferece aos mortais como comida e bebida.

A Sequência da Missa de hoje expressa a maravilha da Igreja ante esse mistério (sacramento). O Pão dos Anjos se fez Pão dos homens. É o mesmo que canta o famoso canto Panis Angelicus, que é a penúltima estrofe do hino Sacris solemniis, escrito por São Tomás de Aquino para a Festa de Corpus Christi:

Panis Angelicus (O Pão dos Anjos),  Fit panis hominum (Se faz Pão dos homens),

Dat panis cœlicus figuris terminum! (O Pão do céu põe fim às prefigurações!)

O Res mirabilis! (Ó coisa admirável!)  Manducat Dominum, (Consome a Deus),

Pauper, pauper servus et humilis! (Pobre, pobre servo e humilde!)

A solenidade de hoje se caracteriza, também, como um ato de grande e profunda adoração. Adoração, porém, não como quem se coloca diante de uma realidade fixa, estática ou quase física, mas, antes, como quem vê Deus “se matando”, se desdobrando, se sacrificando todo, em mil e uma forma, para poder ser recebido, e assim poder estabelecer conosco um Sacrum Convivium. Daí, a necessidade de também nós respondermos a tão inaudita iniciativa, pelo menos com o desejo de adorá-lo com um profundo ato de fé, isto é, crendo que é assim que Ele quis e quer estar sempre conosco, até a consumação dos séculos (Mt 8,26). Aliás “adorar’, significa, justamente, o ato de “levar à boca” aquilo que se ama ou do que se necessita como, por exemplo, o alimento, a exemplo da criança que leva à boca o seio de sua mãe a fim de sugar-lhe o leite da vida; ou, melhor ainda, como os amantes trocam o beijo do mistério do amor que lhes feriu o coração e se tornou o sentido de sua vida.

Conclusão

Como conclusão para essa solenidade vale a pena refletir esta passagem da Laudato Si, do Papa Francisco:

A criação encontra sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo em nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo». A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, «a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador». Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira (LS 236).

 Enfim, “Corpus Christi” é o dia em que, mais que em outros, imitando São Francisco, prostrados, devemos rezar e dizer simplesmente, assim:

 Nós vos adoramos, santíssimo senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas Igrejas, que estão no mundo inteiro  e vos bendizemos porque pela vossa santa Cruz remistes o mundo (T). ( Frei Dorvalino Fassini OFM)